Sunday, March 19, 2006

Algo

As luzes quase que cegavam, eram fortes como ela não podia ser.
Levantava-se e voltava a sentarse. Custava-lhe andar direita no meio daquela gente. Os corpos roçavam uns nos outros, impedindo-lhe a passagem. No fundo não sabia se amava ou odiava aquele sítio. Tinha um interesse estranho por ele, despertava-lhe uma curiosidade para coisas que ela nunca julgou vir a entender e menos gostar.
Numa tentativa de erguer o seu corpo, buscava sair de ali, alcançar a porta de saída. Ao fundo podia ler em luz verde "Exit", mas nao tinha forças, algo nela a impedia de respirar e andar, uma angustia apoderava-se do seu corpo. Débil e medricas continuava a andar, não sabia bem porquê o fazia.

Chegou a casa. Deitou-se na cama que não estava feita; nunca o estava. Encolheu-se e olhou para o lado. Ali estava ela. Porquê? Era como uma perseguição, uma assombração.
Muitas vezes os dois corpos confundiam-se. E então era aí que ela deixava de saber se era ela ou se era a outra. Mesmo quando não estavam juntas, ela olhava-se no espelho e não se reconhecia. Ficava (ou ficavam??) assim horas em frente do espelho, e repetia "nao sou eu, nao sou eu"; era então que aparecia o homenzinho da picareta. Era muito pequeno, como um duende, subia desde o chao até ao peito dela, e mesmo na zona da boca do estomago começava a escavar, a picar, mais fundo, mais fundo, "nao sou eu, nao sou eu, nao sou eu".

Voltava. Era de noite. Entrava naquele antro escuro e ruidoso. As luzes voltavam a cegá-la, apontando na sua direcção e ela voltava a deixar de ser ela. Esquecia o seu corpo por momentos, abandonava-o e deixava-o á deriva. Não eram eles que a olhavam. Era ela. Fazia tudo por ela.
Só a recompensa a acalmava. O calor que lhe subia pelas veias até à cabeça, fazia-a dançar sem parar, era perfeita, sem erros, sem vergonhas. Feliz.


Muitas vezes pensou em parar, em deixar de usar aquela máscara suja e negra no negro da noite. Muitas vezes pensou eu sair daquele sitio, em mudar de vida, ser alguêm, ser feliz de verdade...muitas vezes pensou..."não sou eu,...não sou eu!"

1 comment:

Celi M. said...

Um texto tão estranho e tão familiar, familiarmente estranho. O espaço tão bem descritos que nos parecem nossos. Gostei ainda que a história esteja escondida na neblina.(é capaz de se de proposito)
Gostei